segunda-feira, junho 09, 2008

Da parvoíce

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

in Ortónimo, Fernando Pessoa


Brindemos à parvoíce, irmãs! Brindemos ao não saber! Brindemos ao não saber que se é parvo!

Viva a petulância, a arrogância, a irritante constância de quem não sabe que não sabe.

Cansamos de saber. Cansamos de saber que os outros não sabem. Cansamos de fingir não saber. Cansamos de fingir. Cansamos dos outros, das outras, dos amigos dos outros e das outras, do "disse que", do "juro que alguém me contou", do "tenho quase a certeza que"... Cansamos!

Como Campos um dia se cansou, as Bacas estão cansadas. E tristes. Tristes por saber. Saber o que ninguém sabe. Saber o que mais ninguém sabe. Saber que ninguém quer saber. Cansamos de estar cansadas.

Vamos ser Ceifeiras que cantam e são felizes. Vamos ser Ceifeiras que não sabem. Ceifeiras que não sabem que não sabem. Ceifeiras petulantes, arrogantes e irritantes. Ceifeiras que cantam e são felizes.

Sem comentários: